8 de nov. de 2016

Ilhéus (BA)

Hoje, analisarei o brasão de Ilhéus, berço de Jorge Amado e, inclusive, pano de fundo para algumas de suas obras.

O brasão de Ilhéus é o seguinte:


O escudo é o mesmo que seria, supostamente, ostentado pelo primeiro donatário da capitania de Ilhéus, Jorge de Figueiredo Correia, ou seja, partido de Figueiredo e Correia — o segundo, aparentemente, com os esmaltes invertidos, o que não seria inédito na heráldica portuguesa. Foi adotado, no entanto, apenas em 1965.

Os suportes são a cana-de-açúcar, primeira cultura local, e o cacau, ao qual Ilhéus tanto deve.

Em minha interpretação:

Ilhéus: Partido: I- de vermelho, cinco folhas de figueira de verde, perfiladas de ouro, postas em aspa; II - de vermelho, fretado de ouro.

A bandeira é inspirada no brasão, mas com os elementos rearranjados ou adaptados:


Aproveito a oportunidade para abordar um dos meus brasões eclesiásticos favoritos, aquele da diocese católica romana de Ilhéus.


Em minha interpretação:

Diocese de Ilhéus: De prata, cruz da Ordem de Cristo firmada nos bordos; brocante sobre o todo, escudete de prata, com uma cruz de vermelho.

O brasão, criado em 1913, contém uma cruz de São Jorge, padroeiro de Ilhéus — originalmente, Vila de São Jorge de Ilhéus —, sobre a cruz da Ordem de Cristo, representando os catequizadores trazidos pela colonização portuguesa. Eu acho inteligentíssima a forma como o brasão simula o efeito de de-um-ao-outro.

Comentários e sugestões são bem-vindas.

31 de out. de 2016

Sergipe

No Brasil, mas não exclusivamente aqui, há o vício de chamar de "brasão" aquilo que não o é. Por exemplo, muitos utilizam o termo, até de maneira oficial, para designar uma insígnia sem escudo. A simples presença de um escudo não faz de uma insígnia um brasão, no sentido mais técnico da palavra, mas não existe brasão sem escudo!

Muitos chamam de "brasão" o que a lei — de maneira, talvez, mais sábia — chama de "selo" do estado de Sergipe. Como podemos constatar, o "selo" não possui escudo, e só pode ser confundido com um brasão por mera analogia.

"Selo" atual do estado de Sergipe.

A insígnia apresenta um índio, supostamente o líder indígena Serigi (ou Serigy), tendo contato com um balão de ar quente, sendo a palavra "PORVIR" gravada em seu envelope. É, portanto, uma metáfora ao passado e futuro do estado, lado a lado — quando o professor Brício Cardoso o desenhou, por volta de 1892, balões eram o suprassumo da engenharia aeronáutica. Ao fundo, uma paisagem, que apenas torna mais absurda a classificação da insígnia como brasão.

Tendo em vista o exposto, gostaria de propor o seguinte brasão para o estado de Sergipe:

Sergipe (proposta): De vermelho, sol de ouro em seu esplendor; em contrachefe, uma faixa ondada de prata carregada de três siris do campo.

O sol do escudo, além de propícia referência às belezas do estado, alude ao brasão assinalado ao Sergipe durante o período holandês, como já vimos aqui.

Sergipe (histórico)

A faixa com os siris remete à etimologia consagrada do nome do estado, que significa "no rio dos siris" em tupi antigo, alusão ao rio Sergipe.

Aprofundando minha pesquisa, descobri que a faixa ondada com siris já foi usada para se aludir ao Sergipe na heráldica da Marinha. Por exemplo, o brasão do CT (contratorpedeiro) Sergipe (D-35), já desmanchado, e da Capitania dos Portos de Sergipe:

CT Sergipe (D-35) e Capitania dos Portos de Sergipe, respectivamente

Tais brasões exemplificam porque, em minha opinião, a Marinha é a força armada que produz heráldica de melhor qualidade no Brasil, atualmente.

Apenas por curiosidade, decidi brasonar o distintivo do antigo CT Sergipe. Ele continha um pentágono invertido, tradicional na heráldica da marinha de muitos países e provável alusão aos cinco oceanos (Pacífico, Atlântico, Índico, Glacial Ártico e Glacial Antártico).

CT Sergipe (D-35): De azul, faixa ondada de prata carregada de dois siris de vermelho.

Devo lembrar que minha crítica, construtiva, é direcionada ao "brasão", não ao estado. Dito isso, comentários são muito bem-vindos.

6 de set. de 2015

Ouro Preto (MG)

Uma discussão recente sobre os cartões heráldicos da Eucalol (uma fábrica de produtos de higiene pessoal que existiu entre as décadas de 1910 e 1970) gerou certa repercussão no grupo de Facebook Heráldica Brasil — vide o post de John Rafael sobre as armas colonias de São Luís (MA).

Eu tenho a impressão que as ilustrações que adornavam os cartões com temática heráldica da Eucalol foram retiradas do livro "Brazões e bandeiras do Brasil", de Clóvis Ribeiro. Ribeiro cita em sua obra apenas seis brasões passados a localidades brasileiras durante o período colonial por autoridades portuguesas: Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565), Belém do Pará (1616), São Luís do Maranhão (1647), Vila Bela da Santíssima Trindade (1715) e Cuiabá (1727).

Algo que sempre me deixou curioso é se a omissão do brasão de Ouro Preto, que, segundo o site da própria Câmara Municipal, foi emitido em 1711, foi intencional. O brasão que aparece no site da Câmara é o seguinte:


 Os ornamentos exteriores, certamente, foram parcialmente ou totalmente adotados durante o período republicano. Se comprovar-se que o escudo foi adotado por volta de 1711, no entanto, seu bom gosto seria destacado positivamente entre os demais daquele período de décadence heráldica, Portugal incluído. Em minha rendição:

Ouro Preto: Cortado encaixado de três peças de ouro e negro.

A escolha dos esmaltes ouro e negro são evidentemente parlantes. Os três "picos" e dois "vales" do escudo representam a topografia do município: os morros Cabeças, Santa Quitéria e Alto da Cruz, e os vales Antônio Dias e Pilar do Ouro Preto.

A bandeira de Ouro Preto é curiosamente similar à do estado de Minas Gerais e tem como temática principal o processo de extração do ouro na então Vila Rica:


 Uma curiosidade: anteriormente, o lema da cidade era "PRŒTIOSUM TAMEN NIGRUM"("precioso, embora negro"). Contudo, a possibilidade de uma tradução racista levou o município a oficialmente substituí-lo, no Dia da Consciência Negra de 2005, pelo parlante "PRŒTIOSUM AURUM NIGRUM" ("precioso ouro preto").

Quanto à origem em 1711, resta ser confirmada — qualquer contribuição seria bem-vinda. Eu posso pensar em pelo menos um motivo para confusão: na época, quando elevadas ao status de vila, as localidades brasileiras poderiam ganhar o direito a ostentar uma variação do escudo português. Sabará ainda o faz:


Uma questão de segunda ordem que poderia ser útil: o brasão do visconde do Ouro Preto influenciou o da cidade, ou vice-versa? Dadas as circunstâncias, eu considero uma coincidência improvável.

Afonso Celso de Assis Figueiredo: De ouro, três triângulos equiláteros de negro arranjados em forma de triângulo equilátero.

Qualquer comentário ou sugestão é muito bem-vindo.

29 de jun. de 2015

Notas acerca da genealogia do Livro do Armeiro-Mor

Ontem me deparei com uma imagem que me soou familiar (clique na imagem para dar zoom):


Aparentemente, essa imagem foi extraída de uma lâmina colorida de uma edição antiga da Encyclopædia Britannica. A legenda da lâmina é a seguinte:
Shields of arms of "Le Roy Darrabe", "Le Roy de Tarsse" and other sovereigns, mostly mythical, taken from a roll of arms made by an English painter in the time of Henry VI.
É bem provável que nunca tenha a visto antes, mas os brasões contidos neles, sim. Como o autor da legenda bem nota, a maioria dos brasões neste armorial são imaginários, ou seja, fruto da imaginação do artista ou do editor do armorial, não de uma constatação.

Mas sabe onde eu os vi antes? No Livro do Armeiro-Mor, o mais emblemático trabalho de arte heráldica de Portugal e, talvez, um dos mais belos da Europa no período. A seguir, os fólios do Livro do Armeiro-Mor, com respectiva numeração, compilados conforme a similaridade com o armorial acima. Clique nas imagens para dar zoom.


Muitos armoriais antigos usavam outras coletâneas durante a compilação dos brasões. Conforme argumenta Steen Clemmensen, a repetição de erros ou a frequência em que alguns brasões atípicos (como os imaginários) aparecem podem ser usadas para traçar uma genealogia entre os armoriais, pois é improvável dois autores tenham inventado todos os brasões imaginários independentemente.

Se confiarmos na datação da lâmina da enciclopédia, ela é do reinado de Henrique VI (1422-1461 e 1470-1471). O Livro do Armeiro-Mor é datado de 1509, mas alguns acadêmicos argumentam que pode ter sido iniciado ainda durante o reinado de João II (1481-1495); de qualquer maneira, posterior ao armorial inglês.

Algumas dos brasões presentes no armorial inglês aparecem em fontes mais antigas, como no Atlas Catalão (c. 1375), do cartógrafo maiorquino Abraão Cresques. Os reis de Aragão costumavam presentear outros soberanos com as belas cartas náuticas de Cresques, e talvez o artista inglês tenha tido contato com um desses brindes.


Dos doze exemplos naquela lâmina, os únicos que divergem significativamente são o da Polônia, cuja representação portuguesa está mais próxima da realidade, e o de Túnis com crescentes, que guarda mais semelhanças com o do Atlas Catalão. As figuras das bandas vermelhas do penúltimo brasão foram omitidas no armorial português, possivelmente por causa de sua difícil visibilidade no inglês.

Tais evidências podem ser usadas para traçar uma genealogia do Livro do Armeiro-Mor. Estas evidências não são suficientes para declarar o armorial inglês ancestral direto do português: talvez possa ser melhor explicado como "tio" ou "irmão mais velho". Mas é quase certo, de qualquer maneira, que ambos são aparentados.

Qualquer evidência adicional é bem-vinda!

25 de mai. de 2015

Brasília (DF)

A ideia de transferir a capital do Brasil para seu interior data antes mesmo da mudança de capital de Salvador para o Rio de Janeiro, no século XVIII. A mudança para o Planalto Central, especificamente, é citado em trabalhos de Hipólito José da Costa, o patrono da imprensa nacional, e do grande historiador Francisco Adolfo de Varnhagen.

A Constituição republicana de 1891 fixou o Planalto Central como o local da futura capital. Apesar da imediata demarcação e transferência da área para a União, Brasília só foi inaugurada no feriado de Tiradentes de 1960, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, cumprindo promessa de campanha. Alguns dos encarregados pela construção de Brasília, Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, foram o arquiteto Oscar Niemeyer, o urbanista Lúcio Costa e o engenheiro Israel Pinheiro.

Aprovado ainda em 1960, o brasão de Brasília é, talvez, a obra heráldica mais inusitada do poeta Guilherme de Almeida:



O brasão contém um tipo de cruz inédito, batizado como "cruz de Brasília", que representa o poder emanando para os quatro cantos do Brasil, e sua forma é inspirada nas insólitas curvas desenhadas por Niemeyer para as colunas do Palácio da Alvorada, primeira construção inaugurada em Brasília e residência oficial do presidente da República.

Em vez de uma coroa mural tradicional, o emblema é coroado por uma mesa de reuniões, e seu mote é "venturis ventis" (do latim, "aos ventos vindouros"). Na minha opinião, pode-se muito bem reduzir o escudo brasiliense ao seguinte:

Brasília: De verde, uma cruz de Brasília de ouro.


A mesma cruz está presente na bonita bandeira de Brasília:


Colocando a mesma borda branca no escudo:

Brasília (proposta): De verde, uma cruz de Brasília de ouro e bordadura de prata.

Numa próxima postagem, falo mais sobre a Arquidiocese de Brasília. Por ora, é isso.

Comentários e sugestões são bem-vindos!

20 de jan. de 2015

São Luís (MA)

No post sobre França Equinocial, vimos que São Luís foi a capital daquela colônia; aliás, foi a única cidade brasileira fundada por franceses. Outro fato notável é que, entre 1621 e 1811, São Luís foi a capital, em ordem cronológica, do Estado do Maranhão, Estado do Grão-Pará e Maranhão e Estado do Maranhão e Piauí, que, na teoria, eram colônias separados do Estado do Brasil.

O brasão de São Luís é um dos seis que, segundo a historiografia tradicional, foram assinalados pelos portugueses a vilas ou cidades brasileiras (os outros são Salvador, Rio de Janeiro, Belém, Vila Bela de Trindade e Cuiabá). A cidade ganhou o seu em 1647, e pode ser visto abaixo:
Fonte: MEIRELES, 1994

A seguir, minha interpretação pessoal do mesmo. Eu tomei a liberdade de remover os escudos da perspectiva isométrica, e assinalei as armas da Casa de Nassau ao Reino dos Países Baixos. Ainda assim, não sei porque o brasão do Reino da França é anacrônico. Infelizmente, talvez apenas a provisão régia original possa responder a essas perguntas.
São Luís (colonial)

O brasão foi concedido em 1647, três anos após a expulsão dos colonizadores holandeses pelos próprios moradores de São Luís. A interpretação tradicional do escudo, com a balança pendendo para o lado português, é de que a justiça e o direito (jus) português preponderou (prœponderat) sobre a força militar (vis) francesa e neerlandesa.

Em 1926, São Luís ganhou seu brasão moderno. A versão atualmente utilizada pela prefeitura da cidade é a seguinte:



Minha realização do mesmo:

São Luís: De azul, sete estrela de prata arranjadas conforme a constelação de Plêiades; escudete firmado em chefe franchado: I - De verde, três flores-de-lis de ouro; II - De prata, cinco escudetes de azul em cruz, cada um carregado de cinco besantes de prata em aspa.

A constelação de Plêiades é uma referência aos escritores maranhenses que se destacaram a nível nacional, especialmente a geração de Gonçalves Dias (autor da "Canção do Exílio" e do épico I-Juca Pirama), que rendeu à cidade a alcunha de "Atenas brasileira". O escudete faz certa alusão ao brasão colonial, enquanto que sua posição é uma referência à posição da ilha de São Luís em relação ao estado do Maranhão.

Aproveitando a ocasião, gostaria de comentar o brasão da Arquidiocese de São Luís no Maranhão:


A minha interpretação para o mesmo brasão:

Arquidiocese de São Luís no Maranhão: Cortado ondado: I - De azul; II - Ondado de  prata e azul; brocante sobre o todo, três flores-de-lis de ouro.

Eu não encontrei nenhum texto sobre esse brasão, mas não é difícil interpretá-lo. Além de representar o passado colonial da ilha, as flores-de-lis podem representar São Luís da França, que nomeia a arquidiocese (apesar de não ser seu patrono). O campo ondado deve referir-se ou ao caráter insular de São Luís ou ser parlante de Maranhão (do tupi via espanhol, rio grande ou mar), ou ambos.

Comentários, adições/correções e sugestões são bem-vindos.

6 de jan. de 2015

Corinthian-Casuals Football Club (Inglaterra)

Nesse janeiro, o time do Corinthian-Casuals FC excursionará ao Brasil, em visita que contará com um amistoso contra o time do Sport Club Corinthians Paulista, cujo nome e primeiros uniforme e distintivo foram inspirados pelo Corinthian FC, que juntou-se com o Casual FC em 1939 para formar o clube atual.

O Corinthian Football Club, de Londres, foi um dos mais ilustres times do primórdio do football association. Durante a décade de 1880, constituiu a base da seleção inglesa e, em duas ocasiões na próxima década, representou o time nacional em compromissos contra a seleção de Gales. Apesar da inegável superioridade sobre os demais times (resultando em muitas goleadas inesquecíveis), o espírito desportivo presente em todo o estatuto do clube impedia a participação em competições ou por prêmios de qualquer tipo até 1900.

Nas décadas seguintes, mantendo-se amador (status zelosamente mantido até hoje) em meio a profissionalização do esporte na Inglaterra, excursionou por vários países, que inspirariam, além do quase-xará brasileiro, as camisas brancas de nada menos que o Real Madrid.

Já em 1959, como Corinthian-Casuals, o time recebeu concessão de armas pelo College of Arms, pelos serviços prestados ao futebol inglês. Até onde consta, foi a única equipe de futebol, amadora ou profissional, a receber tal honra. Uma realização do mesmo pode ser vista abaixo:


Uma realização do escudo, de minha autoria, pode ser conferida abaixo:

Corinthian-Casuals Football Club: De verde, uma banda do campo filetada de prata carregada de um leopardo de ouro; num cantão de prata, bola de futebol de couro de sua cor brocante sobre uma cruz de vermelho.

O leão e a cruz de São Jorge são símbolos tipicamente ingleses, e sua inclusão em brasões concedidos pela Coroa é, em muitas ocasiões, considerados uma honra maior. O simbolismo da bola de futebol é óbvio e, talvez, as linhas brancas em fundo verde façam alusão a um campo de futebol.

No timbre, o leão de duas cabeças representa as duas grandes equipes  ̶̶̶  o Corinthian FC e o Casuals FC  ̶̶̶  que se amalgamaram para formar a equipe atual, e segura bandeirolas com as cores dos dois ex-times, respectivamente, branco-e-azul e rosa-e-chocolate. A divisa, "E Duobus Unum" ("De dois, um"), representa o mesmo fato.

Sugestões e comentários são bem-vindos.

28 de nov. de 2014

Uma tréplica

Eduardo D'Castro, em seu blog pessoal, fez uma postagem com sete "mitos" sobre a heráldica. As três últimas citações foram retiradas, ipsis literis, de textos meus. Por meio desse post, pretendo demonstrar um porquê de não considerá-las "mitos".

[EDIT: Aparentemente, apenas o último dos textos era meu. De qualquer forma, todas minhas posições expressas a seguir estão de pé.]

Não há nenhum órgão regulador para armoriais (sic) atuante hoje em dia, e mesmo quando houve, o uso de armas por não-nobres ocorreu de forma evidente. Hoje, em países da Commonwealth, QUALQUER UM pode adotar armas.

Nessa frase, refiro-me à situação do Brasil republicano. A primeira oração é fato inegável: não há órgão oficial que regule a situação da heráldica no país. Qualquer posicionamento sobre o assunto é extraoficial e subjetivo e pretendo provar que minha posição é tão válida quanto qualquer outra.

O primeiro contra-argumento de Eduardo é que essa posição vai contra a "tradição familiar". Nesse ponto, é importante destrinchar sua posição sobre o assunto. Em post de 26 de novembro desse ano, afirma:
Eu já expliquei que acho correto adotar um brasão quando se tem uma tradição à preservar ou um causa pessoal importante. Vaidade das vaidades é simplesmente adotar armas por adotar, sem pesquisa genealógica, nem causa. Qualquer um pode adotar armas, como já disse, mas é preciso observar uma história ou causa por trás desta adoção.
Aqui, é importante explicar um pouco da história da heráldica. Durante o período das Cruzadas, as armaduras tornavam-se cada vez mais pesadas, com capacetes fechados que cobriam todo o rosto. Dessa maneira, era necessário o uso de algum novo meio de identificar rapidamente um combatente em campo de batalha e, melhor, saber se era aliado ou inimigo. Daí, surge a heráldica, cujo nome (na verdade, relativamente moderno) provém dos "arautos", cargo com diversas funções cerimoniais e diplomáticas e que, durante batalhas e torneios, eram encarregados da identificação dos participantes a partir dos brasões ostentados. Após algumas décadas, tais brasões passaram a ser hereditários (tal como as próprias armaduras), o que não acontecia em primeiro momento.

A novidade se espalhou como febre para as elite não-combatente e, nos próximos séculos, para burgueses (no sentido de "habitante de um burgo") e autoridades eclesiásticos, quando os brasões passaram a compor ou substituir selos durante a autenticação de documentos e marcação de posse. Percebe-se, aí, que os brasões não deveriam pressupor alguma causa, mas servir como meio de identificação.

O uso de armas complexas, com simbolismo associado a "causas" e como meio de ostentação de nobreza ou "tradição familiar" é um fenômeno mais recente, associado ao que alguns historiadores da heráldica costumam chamar de Décadence. Privar um indivíduo de possuir armas é privá-lo do direito de identificar-se através da arte heráldica.

Não me lembro exatamente o contexto em que expressei que "o uso de armas por não-nobres ocorreu de forma evidente".

Quando falei de Commonwealth não me referia a Nobreza e sim à Heráldica, mais especificamente ao College of Arms e seus equivalentes. O College of Arms é uma instituição que goza de certa autonomia. Em época de globalização, onde toda fonte de conhecimento sobre a heráldica é proveniente de diferentes países, e ater-se a apenas um regulamento para falar de heráldica é muito restritivo.

Numa continuação do pensamento anterior, lembro que, em todos as autoridades heráldicas ainda existentes através do mundo, qualquer indivíduo, independentemente de gênero, etnia, religião, origem social ou qualquer outra forma de distinção, é permitido a obtenção de concessão ou registro de armas (os modelos variam), seja em países monarquistas ou republicanos. E, em todos eles, com exceção da Escócia, não é punível a adoção de armas por fora do framework legal. Supor que o sistema oficial brasileiro ou português manteriam-se idênticos ao que eram ao tempo de sua extinção é uma subjetividade.

Lembro ainda que a população brasileira é constituída de seus nativos e de imigrantes de todos os continentes. Ater-se a apenas uma "tradição" em prejuízo de todas as outras, ou de um sistema tolerante, que vem sendo pregado por autoridades e entusiastas da heráldica de todo o mundo, é um retrocesso, na minha humilde opinião. Como exemplos extremos, concessões oficiais de armas para um inuíte no Canadá e um zulu na África do Sul.

Eduardo também contra-argumenta que não é possível desvencilhar nobreza e heráldica. Se não é possível, seria ao menos necessário. Pela redação da primeira Constituição da República:
Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.
Se você acompanhou minha resposta ao tópico anterior, deve ter percebido que em boa parte do mundo com tradição heráldica firmada (inclusive Portugal, até cerca do fim da Idade Média), os brasões de armas, mesmo quando sua concessão era considerado uma honraria dada pela Coroa, não conferiam status de nobreza, tampouco nobreza (titulada ou não-titulada) dava o privilégio exclusivo de possuir armas.

O autor do artigo ao qual respondo também trata de maneira jocosa a decisão de adotar paquife, virol e elmo. Em primeiro momento, todos eles são derivados do "uniforme" do cavaleiro medieval. O fato de alguns desses elementos terem sido restritos a certas classes sociais em um sistema específico de armaria não necessariamente exprime intenção de passar-se por um agraciado, especialmente quando as premissas que sustentavam tal sistema foi expressamente extinto no país (vide citação anterior). É importante notar que o elmo que eu utilizo é muito diferente daquele concedido para nobres em Portugal e outros países; é fechado e de ferro, ao invés de aberto e de prata, o que, em algumas localidades representaria exatamente uma intenção de não se passar por ilustre.

É importante afirmar que nunca houve tanta valorização e estudo da heráldica medieval (para citar alguns autores eminentes, Michel Pastoureau e Bruno Heim). A utilização de "somente o escudo e no máximo um virol, talvez paquife", como queira Eduardo, é uma distorção da estética heráldica medieval.

Depende do que você define como ‘direito nobiliárquico’. Na minha visão, e não estou sozinho, pelo direito nobiliárquico brasileiro, qualquer uso de brasão hoje em dia seria usurpação, pois as cartas de brasões brasileiras, em geral, não permitiam herança pelos descendentes, e a lei não considerava válidos brasões que não constem no Cartório [de Nobreza e Fidalguia do Império].

Essa parte é mais simples de ser destrinchada. Argumenta-se que, através da emissão de uma nova carta de armas, que requereria um novo pagamento, o descendente tornava-se apto a usar o brasão de seu/sua ancestral. Em tese, as "cartas de brasão" (Eduardo cita que a expressão correta seria "cartas de armas", mas pode-se ver seu uso em concessão portuguesa aqui) garantiam que o uso das armas não fosse automaticamente herdado, e não o contrário. Durante o Segundo Reinado, o uso de brasão sem a devida carta, mesmo por herdeiro legítimo, passaria a configurar crime previsto no Código Penal. É importante notar o esforço de D. Pedro I para conceder cartas de armas brasileiras para a nobreza e fidalguia portuguesa que habitavam o país.

Ele termina sua contra-argumentação com uma citação de Mário de Méroe, cuja obra não apenas conheço como possuo (apesar de não ser grande admirador), o que explicito com a fotografia da capa do livro com uma fotografia 3x4 minha, a seguir:



Vamos, enfim, para a citação (que aparenta ser de edição diferente da minha):
Assim sendo, baseado no conceito básico da família que é reverenciar os próprios ancestrais mortos e lembrando que, hoje em dia, muitos estudiosos de direito nobiliárquico reconhecem o direito ao uso do brasão de armas pela família do titular, sempre após sua morte, esses 2 fatos nos permitem inferir que é aceitável/compreensível/permitido aos membros das famílias dos titulares brasileiros, com título sul cognome, isto é: com o próprio nome da família, o uso dos brasões de armas destes titulares de maneira legal valendo, este brasão, como uma identificação/distinção e referência histórica/sentimental do passado desta família.
É importante notar a utilização da expressão sul cognome. Os títulos sul cognome representavam uma infimidade entre os concedidos durante todo o Império. Na minha citação original, fui correto na utilização do "em geral", mas fui desatento na utilização de "qualquer".

Conclusão

Espero ter sido suficientemente claro e evitado o pedantismo em minhas colocações. Ponho-me a disposição para discutir ou corrigir qualquer ponto deste texto, através da caixa de comentários abaixo.

[EDIT: Você pode acompanhar a resposta de Eduardo e minhas considerações a respeito nesse link.]

28 de out. de 2014

Coincidências? #1

Escrevendo a postagem anterior desse blog, esbarrei novamente com o brasão da Faculdade Maurício de Nassau, instituição privada de ensino superior com representação em diversas cidades do Nordeste e Norte Brasileiro.

Seu emblema é o seguinte:


Tal logo, sobre um ponto de vista heráldica, destaca-se negativamente pela péssima arte e por erros de feitura amadores - a coroa mural, por exemplo, além de injustificável, está no esmalte não-usual e não deveria ser lugar para uma divisa.

Arrisco-me ao seguinte brasão:

Faculdade Maurício de Nassau: Partido de vermelho e azul, brocante um grifo rampante de ouro, entre suas mãos um sol de azul carregado de besante de prata.

Esse brasão sempre me pareceu familiar, até mesmo antes de conhecê-lo. Olhando o simbolismo dado no próprio site da instituição, não se percebe nenhum significado claramente ligado à instituição.

Isso porque o brasão é cópia do brasão de outra entidade, de natureza bem diferente: o Exército Brasileiro. Conforme o site do mesmo:


A imagem do brasão não corresponde com exatidão à descrição dada pelo texto da lei e, mesmo que correspondesse, ainda há erros de composição que posso tratar nesse blog em ocasião futura.

A seguir, a descrição dada pelo decreto, que pode ser conferido na íntegra aqui:
Escudo clássico português partido de vermelho e azul, tendo em brocante um grifo de ouro, animado, lampassado e armado de preto, segurando nas garras uma estrela de oito pontas de prata. Simbolizando, a figura mitológica do grifo, a vigilância e a guarda na defesa da Pátria e da lei; a estrela de oito pontas, a necessidade de se agir em todos os pontos cardeais em busca da União.
Em minha interpretação:

Exército Brasileiro: Partido de vermelho e azul, brocante um grifo rampante de ouro, armado, lampassado e animado de negro, entre suas mãos uma estrela de oito pontas de prata.

É possível que a enorme semelhança entre os dois brasões seja mera coincidência? Sim, mas as circunstâncias não jogam a favor.

Para ler o post de John Rafael sobre o brasão do Exército Brasileiro, clique aqui.

Comentários são bem-vindos!

19 de out. de 2014

Recife (PE)

Hoje falaremos sobre o brasão do Recife, a "Veneza brasileira" e a Mauritsstad de Nassau.


O brasão da cidade é cortado. Em chefe, a bandeira de Pernambuco, a mesma derivada da bandeira da Revolução Pernambucana de 1817. No contrachefe, uma vista do extremo norte do Recife, com o farol e o forte da Barra. Os suportes faz tanto alusão ao brasão do conde João Maurício de Nassau-Siegen quanto ao apelido de "Leão do Norte", ganho devido às lutas da população do estado.

Maurício de Nassau: Esquartelado: I - De azul, bilhetado de ouro, um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho (Nassau); II - De ouro, leopardo leonado de vermelho, armado, lampassado e coroado de azul (Katzenelnbogen); II - De vermelho, uma faixa de prata (Vianden); IV - De ouro, dois leões leopardados de ouro, armados e lampassados de azul (Dietz).

Minha interpretação das armas do Recife:

Recife: Cortado: I - De azul, um arco-íris de vermelho, ouro e verde entre uma estrela e um sol de ouro em pala, uma cruz latina de vermelho num contrachefe de prata; II- Vista para o farol e o fortim da Barra, tudo da sua cor.

Na minha humilde opinião, o brasão do Recife não está à altura da cidade, uma vez que o uso de paisagens realistas em brasões não é de bom gosto. Na minha humilde opinião, juntando-se elementos do brasão e da bandeira da cidade, pode-se obter um resultado mais efetivo.

Bandeira do Recife.

A escolha mais imediata para a cor do leão seria o dourado:

Recife (proposta): De prata, leão coroado cosido de ouro, armado e lampassado de vermelho, entre suas garras uma cruz latina do mesmo; chefe de azul, um arco-íris de vermelho, ouro e verde entre uma estrela e um sol de ouro em pala.

Contudo, o brasão contraria a regra da contrariedade dos esmaltes ao sobrepor um metal sobre outro (leão de ouro em fundo de prata). Minha segundo proposta utiliza um artifício para resolver tal problema:

Recife (proposta): De prata, leão da sua cor, coroado de ouro, entre suas garras uma cruz latina do mesmo; chefe de azul, um arco-íris de vermelho, ouro e verde entre uma estrela e um sol de ouro em pala.

Comentários, sugestões e correções são bem-vindos.