28 de nov. de 2014

Uma tréplica

Eduardo D'Castro, em seu blog pessoal, fez uma postagem com sete "mitos" sobre a heráldica. As três últimas citações foram retiradas, ipsis literis, de textos meus. Por meio desse post, pretendo demonstrar um porquê de não considerá-las "mitos".

[EDIT: Aparentemente, apenas o último dos textos era meu. De qualquer forma, todas minhas posições expressas a seguir estão de pé.]

Não há nenhum órgão regulador para armoriais (sic) atuante hoje em dia, e mesmo quando houve, o uso de armas por não-nobres ocorreu de forma evidente. Hoje, em países da Commonwealth, QUALQUER UM pode adotar armas.

Nessa frase, refiro-me à situação do Brasil republicano. A primeira oração é fato inegável: não há órgão oficial que regule a situação da heráldica no país. Qualquer posicionamento sobre o assunto é extraoficial e subjetivo e pretendo provar que minha posição é tão válida quanto qualquer outra.

O primeiro contra-argumento de Eduardo é que essa posição vai contra a "tradição familiar". Nesse ponto, é importante destrinchar sua posição sobre o assunto. Em post de 26 de novembro desse ano, afirma:
Eu já expliquei que acho correto adotar um brasão quando se tem uma tradição à preservar ou um causa pessoal importante. Vaidade das vaidades é simplesmente adotar armas por adotar, sem pesquisa genealógica, nem causa. Qualquer um pode adotar armas, como já disse, mas é preciso observar uma história ou causa por trás desta adoção.
Aqui, é importante explicar um pouco da história da heráldica. Durante o período das Cruzadas, as armaduras tornavam-se cada vez mais pesadas, com capacetes fechados que cobriam todo o rosto. Dessa maneira, era necessário o uso de algum novo meio de identificar rapidamente um combatente em campo de batalha e, melhor, saber se era aliado ou inimigo. Daí, surge a heráldica, cujo nome (na verdade, relativamente moderno) provém dos "arautos", cargo com diversas funções cerimoniais e diplomáticas e que, durante batalhas e torneios, eram encarregados da identificação dos participantes a partir dos brasões ostentados. Após algumas décadas, tais brasões passaram a ser hereditários (tal como as próprias armaduras), o que não acontecia em primeiro momento.

A novidade se espalhou como febre para as elite não-combatente e, nos próximos séculos, para burgueses (no sentido de "habitante de um burgo") e autoridades eclesiásticos, quando os brasões passaram a compor ou substituir selos durante a autenticação de documentos e marcação de posse. Percebe-se, aí, que os brasões não deveriam pressupor alguma causa, mas servir como meio de identificação.

O uso de armas complexas, com simbolismo associado a "causas" e como meio de ostentação de nobreza ou "tradição familiar" é um fenômeno mais recente, associado ao que alguns historiadores da heráldica costumam chamar de Décadence. Privar um indivíduo de possuir armas é privá-lo do direito de identificar-se através da arte heráldica.

Não me lembro exatamente o contexto em que expressei que "o uso de armas por não-nobres ocorreu de forma evidente".

Quando falei de Commonwealth não me referia a Nobreza e sim à Heráldica, mais especificamente ao College of Arms e seus equivalentes. O College of Arms é uma instituição que goza de certa autonomia. Em época de globalização, onde toda fonte de conhecimento sobre a heráldica é proveniente de diferentes países, e ater-se a apenas um regulamento para falar de heráldica é muito restritivo.

Numa continuação do pensamento anterior, lembro que, em todos as autoridades heráldicas ainda existentes através do mundo, qualquer indivíduo, independentemente de gênero, etnia, religião, origem social ou qualquer outra forma de distinção, é permitido a obtenção de concessão ou registro de armas (os modelos variam), seja em países monarquistas ou republicanos. E, em todos eles, com exceção da Escócia, não é punível a adoção de armas por fora do framework legal. Supor que o sistema oficial brasileiro ou português manteriam-se idênticos ao que eram ao tempo de sua extinção é uma subjetividade.

Lembro ainda que a população brasileira é constituída de seus nativos e de imigrantes de todos os continentes. Ater-se a apenas uma "tradição" em prejuízo de todas as outras, ou de um sistema tolerante, que vem sendo pregado por autoridades e entusiastas da heráldica de todo o mundo, é um retrocesso, na minha humilde opinião. Como exemplos extremos, concessões oficiais de armas para um inuíte no Canadá e um zulu na África do Sul.

Eduardo também contra-argumenta que não é possível desvencilhar nobreza e heráldica. Se não é possível, seria ao menos necessário. Pela redação da primeira Constituição da República:
Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.
Se você acompanhou minha resposta ao tópico anterior, deve ter percebido que em boa parte do mundo com tradição heráldica firmada (inclusive Portugal, até cerca do fim da Idade Média), os brasões de armas, mesmo quando sua concessão era considerado uma honraria dada pela Coroa, não conferiam status de nobreza, tampouco nobreza (titulada ou não-titulada) dava o privilégio exclusivo de possuir armas.

O autor do artigo ao qual respondo também trata de maneira jocosa a decisão de adotar paquife, virol e elmo. Em primeiro momento, todos eles são derivados do "uniforme" do cavaleiro medieval. O fato de alguns desses elementos terem sido restritos a certas classes sociais em um sistema específico de armaria não necessariamente exprime intenção de passar-se por um agraciado, especialmente quando as premissas que sustentavam tal sistema foi expressamente extinto no país (vide citação anterior). É importante notar que o elmo que eu utilizo é muito diferente daquele concedido para nobres em Portugal e outros países; é fechado e de ferro, ao invés de aberto e de prata, o que, em algumas localidades representaria exatamente uma intenção de não se passar por ilustre.

É importante afirmar que nunca houve tanta valorização e estudo da heráldica medieval (para citar alguns autores eminentes, Michel Pastoureau e Bruno Heim). A utilização de "somente o escudo e no máximo um virol, talvez paquife", como queira Eduardo, é uma distorção da estética heráldica medieval.

Depende do que você define como ‘direito nobiliárquico’. Na minha visão, e não estou sozinho, pelo direito nobiliárquico brasileiro, qualquer uso de brasão hoje em dia seria usurpação, pois as cartas de brasões brasileiras, em geral, não permitiam herança pelos descendentes, e a lei não considerava válidos brasões que não constem no Cartório [de Nobreza e Fidalguia do Império].

Essa parte é mais simples de ser destrinchada. Argumenta-se que, através da emissão de uma nova carta de armas, que requereria um novo pagamento, o descendente tornava-se apto a usar o brasão de seu/sua ancestral. Em tese, as "cartas de brasão" (Eduardo cita que a expressão correta seria "cartas de armas", mas pode-se ver seu uso em concessão portuguesa aqui) garantiam que o uso das armas não fosse automaticamente herdado, e não o contrário. Durante o Segundo Reinado, o uso de brasão sem a devida carta, mesmo por herdeiro legítimo, passaria a configurar crime previsto no Código Penal. É importante notar o esforço de D. Pedro I para conceder cartas de armas brasileiras para a nobreza e fidalguia portuguesa que habitavam o país.

Ele termina sua contra-argumentação com uma citação de Mário de Méroe, cuja obra não apenas conheço como possuo (apesar de não ser grande admirador), o que explicito com a fotografia da capa do livro com uma fotografia 3x4 minha, a seguir:



Vamos, enfim, para a citação (que aparenta ser de edição diferente da minha):
Assim sendo, baseado no conceito básico da família que é reverenciar os próprios ancestrais mortos e lembrando que, hoje em dia, muitos estudiosos de direito nobiliárquico reconhecem o direito ao uso do brasão de armas pela família do titular, sempre após sua morte, esses 2 fatos nos permitem inferir que é aceitável/compreensível/permitido aos membros das famílias dos titulares brasileiros, com título sul cognome, isto é: com o próprio nome da família, o uso dos brasões de armas destes titulares de maneira legal valendo, este brasão, como uma identificação/distinção e referência histórica/sentimental do passado desta família.
É importante notar a utilização da expressão sul cognome. Os títulos sul cognome representavam uma infimidade entre os concedidos durante todo o Império. Na minha citação original, fui correto na utilização do "em geral", mas fui desatento na utilização de "qualquer".

Conclusão

Espero ter sido suficientemente claro e evitado o pedantismo em minhas colocações. Ponho-me a disposição para discutir ou corrigir qualquer ponto deste texto, através da caixa de comentários abaixo.

[EDIT: Você pode acompanhar a resposta de Eduardo e minhas considerações a respeito nesse link.]

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